” In one of his books, Milan Kundera dismisses the ideia of God because acording to him, no God would have designed a life in which shitting was necessary.” Assim inicia John Berger um dos seus magníficos ensaios: A load of shit de 1989. Aí discorre (e bem, como nos habituou) sobre a naturalidade desse produto irremediável da natureza humana ou animal.
Numa manhã de Junho de há 18 anos (a primeira vez que a vi) a pequena Marthe dava corda aos calcanhares de dois anos. Descalça e nuinha em pêlo, pelo caminho de gravilha que atravessava o jardim em frente da casa, apesar do frio matinal. Ninguém aturava aquilo, teve que se deixar escapar lá para fora, onde a correria, gritos e risadas mais parecia coisa de bicha-de-rabear. À tarde saímos no snekker, para as ilhas em frente de Nøtterøy. E não voltou de lá sem que viesse no seu próprio barco (uma banheira insuflável) rebocada por corda para aflição da mãe. A Marthe era terrível. Uns meses depois contou-me o pai que levada de automóvel à Costa Oeste, lhe perguntaram o que davam as vacas – as quais tinha passado tanto tempo a observar e apontar – da sua cadeirinha no banco de trás. Ela respondeu «bostas!». Riram-se os pais. Perguntaram de novo: «mijo!». Perguntaram de novo. E finalmente, à terceira, Marthe deu a resposta desejada: «leite!». Thor contava aquilo com orgulho. Tinha ali uma boa observadora da realidade, cultora da medida e da estatística – não de chavões.
No passado dia 10 de Setembro, enquanto ia lendo Magris recém comprado em Milão, a televisão passava (sem que eu prestasse grande atenção àquilo) a gala das sete maravilhas da gastronomia. A coisa passava-se a cerca de quinhentos metros das janelas de casa. Fui-me rindo com os figurantes vestidos de repolhos, alheiras ou lavagantes, com aquele mostruário de vaidades nacionais recebidas a tapete vermelho. Bonito. A Catarina muito apertadinha de joelhos, o Malato que um dia há-de já ter sido feliz ali… A páginas tantas a sala iluminou-se, entraram-me pelas janelas os relampejos coloridos do fogo de artifício, coisa de que ainda hoje ando agradecido ao edil. Como fui solidário com o seu pranto dolorido de miséria: o sr. Moita Flores (quatro!) dias depois do concílio gastro e festarola nómica anunciava a quem o quiser ler que que o abismo está aí. E de tampolineiros assim vamos.
Por mim, gosto desses seres diáfanos e inofensivos, amigos do seu garfo e do seu copo. Ao contrário das vacas da Marthe – reduzidas a seres terrenos pelo seu olho fino e muito observador-, o gastrónomo dá-nos: poesia dos sentidos; cultura; refinamento de gosto. E faz rodar a economia. Devolve-nos ainda a ideia de Deus que Kundera nos tinha subtraído através daquela estranha prova. Ou como diria John Berguer: A load of refinement…