(imagem: nornorge.com)
Houve, no outono de 45, a 8 de Outubro, umas eleições curiosas em Hammerfest. Numa cidade que tinha sido arrasada pelo invasor alemão, os que voltavam para a reconstruir pouco ou nada tinham. Lançaram-se ao trabalho de reconstrução sem que houvesse dinheiro para salários, sem materiais, com comida escassa, com o inverno nórdico à porta. As eleições são curiosas porque houve um turn-out invulgar. 100% de participação. Todos votaram.
O que estas eleições tiveram também de curioso foi que não havia escolha entre programas partidários. Os partidos tinham acordado um programa comum onde se comprometiam a cooperar num esforço de reconstrução nacional chamado «fellesprogrammet»; onde se pugnava por combater as desigualdades sociais e regionais, promover o pleno emprego, criar uma segurança social abrangente, construir (e distribuir) habitação condigna. Não havia, portanto, nada que escolher a não ser o peso relativo de cada partido no novo parlamento. Mas havia uma esperança enorme numa sociedade mais justa e democrática. Um desejo enorme de uma vida melhor, digna. Os homens que tinham combatido o nazismo (grande parte deles do partido trabalhista) incutiam confiança, partilhavam do mesmo ideal. Pode ler-se, por exemplo, na biografia de Trygve Bratteli de Roy Jacobsen, como esses homens desenhavam na neve de um campo de concentração alemão os planos de casas que se iriam construir no país subjugado, uma morada condigna para todos. Trygve, é claro, foi tal o da conferência de piolhosos.
Vejo as notícias do portugalório, e o carpir de ontem do cuco do pinhal da azambuja, sórdido miserável que envergonha país e meio, e lembro-me destas eleições de Hammerfest. Queixa-se o cuco:
“os diversos interlocutores têm de adotar e cultivar uma cultura de compromisso”
& etc.
Pois bem: siga o exemplo daquelas gentes de Hammerfest e do país que estava em vias de recriar uma das melhores democracias do mundo, e talvez tenha uma forma de evitar a abstenção e obter o compromisso. Crie a esperança de fazer uma sociedade mais inclusiva e justa, digna, sem o achincalhar diário do povo que representa. Há ainda, um outro particular. É que esta democracia que tinha um novo começo em 1945, não tinha apenas uma promessa expressa por todos os partidos num programa comum. Tinha também uma vontade enorme de trazer à justiça aqueles que tinham espezinhado e espoliado (quantas vezes torturado) os seus concidadãos traindo a nação ao apoiar o invasor nazi. Chamaram-lhe landssvikoppgjøret, coisa que se poderia traduzir como «o acerto de contas com os traidores do país».
Não é de crer porém que o exemplo o entusiasme. Para criar uma sociedade mais justa e inclusiva, já sabemos que é supérfluo. E para um «acerto de contas» seria dos mais necessários.
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Antes fosse meramente supérfluo. na verdade, a sua acção contribuiu/contribui directamente para uma sociedade menos justa e inclusiva.
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Excelente post(a).
Raramente um texto tão para o colectivo me deixa arrepiada (é da emoção quando passa pela razão, uma porta aberta, o ar que entra e se dilui pelas esquinas interiores). Hoje aconteceu e eu agradeço.
Esta cavacal ave de mau agoiro é uma vergonha. Quer consensos… o pior é que – no que, lhes convêm -, o que não falta são consensos.
Grande texto, meu Caro, mais um grande texto. Parabéns.
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