Foi um porto de abrigo. Para onde, marinheiro estrangeiro, calcorreava as ruas (tantas vezes debaixo de neve) apressado. As poucas horas em que o navio estava atracado não permitia grandes delongas. Ia por livros. Muitas vezes, a primeira coisa que via, ainda na montra, reflectindo a rua defronte era o modelo de um Drakkar suspenso.
Depois uma parafernália de livros e papéis, espalhados por ali, por vezes sem que se descobrisse ordem aparente, uma babel de línguas diferentes. Entre eles, aqueles que forneceram o fundo a este blog:
Havia gravuras velhas penduradas por ali, uma cascata em Telemark,
Os diários de Albert Speer,
A história de um veleiro de explorações polares, o Fram,
Sete contos fantásticos de Blixen,
A história de uma das mais belas amizades, conversa pelas tabernas de Londres,
Relatos do martírio interminável de um povo,
E as estruturas sociais na nossa Nazaré por um antropólogo da universidade de Trondheim,
Eneidas e Ilíadas em várias línguas,
Guias, resumos, estudos,
Périplos, odisseias de um dia, em hardcover ou paperback,
E tudo isto num labirinto desordenado, em rés-do-chão e cave. O pequeno escritório do livreiro:
O canto onde por vezes se sentava um teólogo,
A escada que levava à cave,
A montra do drakkar,
Cantos,
Recantos,
Corredores,
Labirintos,
Um mundo de encantos para que não chegava o tempo e a curiosidade. E a velha guerra, com esta máquina:
A discussão a cada vez, por me levar um preço irrisório pelos braçados de livros que lá escolhia, que colhia e levava para as leituras no mar. Às tantas, quase envergonhado de lá comprar, com o desejo de comprar o dobro mas com o receio dos descontos. E ao mesmo tempo, uma sensação de beleza ante o gesto de generosidade com o leitor ávido.
Perdeu-se o sítio, aquele labirinto de encantos. Ajudei na mudança, carregando caixotes. E de novo a oferta de que escolhesse o que quisesse. A dádiva. O livreiro num dia de sol,
que guardei como um dos melhores amigos. Telefonou-me hoje, até este lado do mundo, perguntando como tinha corrido a viagem, contando que amanhã irá à cabana, contando da fonte que lhe construí aproveitando um aquífero da montanha para que tenha água corrente, de onde sai um jorro que congelou. Como que nas fotografias.
Foi um dos melhores alfarrabistas de Oslo. Que o marinheiro pobre que ali foi tão bem recebido devolva agora à cidade as imagens de como era há meia dúzia de anos (não se encontram outras na net) é coisa natural.
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